Levantamento mostra crescimento no número de casos de câncer em Goiás após Covid-19
10/06/2023 (18hs31m) - Levantamento feito pelo Jornal O Popular mostra que o isolamento imposto pela pandemia da Covid-19 atrasou diagnósticos, tratamento e procedimentos cirúrgicos para conter o câncer, a segunda maior causa de mortes no mundo, depois das doenças cardiovasculares. O Instituto Nacional do Câncer (Inca), vinculado ao Ministério da Saúde, estima que entre 2023 e 2025 vão surgir 704 mil novos casos no Brasil, 26 mil deles em Goiás.
O impacto já é sentido no Hospital de Câncer Araújo Jorge (HAJ) e na Unidade Oncológica de Anápolis, ambos da Associação de Combate ao Câncer de Goiás (ACCG), onde aumentou em 25% o número de pacientes atendidos entre 2021 e 2022, a maioria através do Sistema Único de Saúde (SUS).
“O que muda a incidência e a mortalidade por câncer são as prevenções primárias e secundárias”, lembra o cirurgião Jales Benevides Santana Filho, presidente da ACCG. Prevenção primária, o médico explica, são as orientações básicas para afastar o risco da doença, como evitar o sol em horários de pico, se exercitar, não fumar e se alimentar de forma saudável. Já as secundárias são as consultas médicas e exames de rastreio capazes de diagnosticar o câncer de forma precoce. “As pessoas estão chegando para o atendimento com a doença em estágio avançado.”
O empresário João Amâncio da Luz, de 60 anos, se encaixa nesse perfil. Há cerca de dois anos ele sentiu dificuldades para se alimentar, com sintomas de refluxo. Morador de um distrito de Vila Propício, a 190 km de Goiânia, optou por remédios paliativos obtidos na farmácia local. Este ano, percebeu que não dava mais para protelar a visita a um médico. “Fui fazer exames que detectaram tumores em três lugares, no esôfago e no intestino, já em estágio avançado.” João, que trabalha perfurando poços artesianos, está internado no Araújo Jorge e terá de passar por cirurgia.
Entre 1994 e 1999 João Amâncio passou por tratamento no Hospital Araújo Jorge para cuidar de um câncer de pele, o tipo mais comum no Brasil. A notícia que recebeu há cerca de dois meses confirma que os cuidados de prevenção deveriam ter sido reforçados, até mesmo em razão do seu histórico familiar. O pai de João, que já morreu, teve câncer de intestino e sua irmã não resistiu a um câncer do colo do útero.
O corretor de imóveis Pedro (nome fictício), 53, tem insistido com os dois irmãos para não negligenciar o exame preventivo da próstata. O pai deles, já falecido, teve câncer na glândula e há cerca de dois meses Pedro foi diagnosticado com a doença e precisou fazer extirpação total do órgão. O último exame de rotina feito por ele foi em 2017, mas seis anos depois percebeu que algo não estava bem. “Havia um ano que eu pedia para ele marcar consulta”, afirma Lúcia, que acompanha o desconforto pós-cirúrgico do marido.
“Um em cada cinco indivíduos terão câncer em sua vida”, diz o relatório do Inca. Lorena Fernandes Freitas, 43, mãe de quatro filhos adultos, descobriu há dois meses que está nessa estatística. Durante o período da pandemia ela não fez os exames de rotina. “Eu senti uma ferida, áspera, não dolorida e comecei a usar uma pomada”, conta. Até então, achou que se tratava de problema normal, mas começaram os sangramentos. A biópsia acusou a lesão maligna no colo do útero. O POPULAR a encontrou internada no Araújo Jorge sentindo dores e esperando por radioterapia.
Impacto de U$ 10 bilhões em 10 anos
Estudo divulgado este ano, realizado em 11 países da América Latina e Caribe, pela Americas Health Foundation, com apoio da Roche, revelou que a interrupção dos serviços de tratamento de câncer na pandemia da Covid-19 poderá provocar a morte de 473 mil pessoas ou levá-las a uma catástrofe financeira e empobrecimento. O impacto foi maior nas mulheres. Mais de 95% dos médicos pesquisados relataram redução do número de mamografias de triagem.
Pelo relatório, o impacto econômico dos atrasos no diagnóstico do câncer, do início tardio do tratamento e das interrupções causadas pela pandemia pode chegar a US$ 10,7 bilhões nos próximos dez anos. Nesta análise estão concentrados os cinco tipos de câncer mais frequentes nesses países: próstata, mama, colorretal, pulmão e cervical. Somente o câncer de mama representa um custo de US$ 3,9 bilhões do impacto econômico total estimado.
“Não temos como atender 100% dos pacientes”
O presidente da ACCG reforça que o câncer é uma doença crônica e evolutiva. “Os casos que estão chegando para nós são avançados e metastáticos. No auge da pandemia muitas prefeituras deixaram de atender os pacientes e enviaram para Goiânia. Em 2021 tivemos de operar muitas pessoas com a doença em fase muito avançada”, afirma Jales Benevides. Ele lembra que nos últimos dez anos a estrutura física do Hospital Araújo Jorge não cresceu e os novos prognósticos mostram um grande desafio a ser enfrentado.
A unidade da ACCG, um centro de alta complexidade, é referência no Centro-Oeste no tratamento de câncer. Mais de 90% dos pacientes são regulados pelo SUS e são da capital e do interior do estado. Cerca de 1% dos 69 mil pacientes atendidos em 2022 veio de outras unidades da federação, como o Distrito Federal e o Tocantins. “Não temos capacidade de atender 100% dos pacientes com câncer. Fazemos mais de 1 milhão de procedimentos por ano. Há uma fila enorme para atendimento ambulatorial. São necessárias políticas públicas para garantir o diagnóstico precoce à população humilde”, afirma Jales Benevides.
Em fevereiro deste ano, o governador Ronaldo Caiado anunciou a construção do Complexo Oncológico de Referência do Estado de Goiás (Cora), um investimento de R$ 424,7 milhões. A primeira etapa, a ala pediátrica, tem previsão de ser entregue em 18 meses. A gestão da unidade ficará a cargo da Fundação Pio XII, atual mantenedora do Hospital de Amor de Barretos (SP). A ACCG, que reivindicava o apoio do poder público para ampliar a sua capacidade de atendimento, busca agora parcerias para realizar a expansão de sua estrutura física.
Casos graves na mama têm acréscimo de 26%
Um estudo liderado por Aline Ferreira Bandeira Rocha, aluna de doutorado do Programa de Pós-Graduação em Ciências da Saúde, da Universidade Federal de Goiás (UFG), indica um aumento aproximado de 26% nos casos graves de câncer de mama no Brasil durante a pandemia da Covid-19. A pesquisa foi publicada em março deste ano no Jornal Internacional de Saúde Pública (International Journal Public Health - IJPH).
Para o levantamento, os pesquisadores avaliaram os efeitos da pandemia no rastreamento do câncer de mama, do diagnóstico ao estágio clínico, em pacientes de 50 a 69 anos atendidas no Sistema Único de Saúde entre 2013 e 2021 em todas as regiões do País. Foram comparados dados de dois períodos: entre 2013- 2019 e 2020-2021, a pior fase da pandemia.
O estudo revela que houve uma redução de 40% no rastreamento do câncer de mama no Brasil entre 2019 e 2020. Em 2021, mesmo com o afrouxamento das medidas de isolamento e a chegada da vacina, a cobertura do rastreamento deste tipo de câncer permaneceu 21% menor em relação aos anos anteriores à pandemia. E o mais preocupante é que houve um aumento expressivo de tumores em estágio avançado em usuárias da rede pública de saúde.
Antes da pandemia, 40,8% dos casos de câncer de mama em mulheres de 50 a 69 anos eram diagnosticados nos estágios III/IV, com essa proporção aumentando significativamente para 51,5% entre 2020 e 2021. Os tumores III e IV são aqueles com mais de cinco centímetros ou que já estão em metástase, ou seja, já atingiram outros órgãos. Nesta etapa as chances de cura são muito pequenas.
O estudo mostra ainda que a região Centro-Oeste é a que mais tem casos graves (21,3%) de câncer de mama após o período crítico da pandemia da Covid-19, seguida da Norte (16,5%). Nas demais regiões o aumento foi de 11,2% (Sudeste), 10,3% (Nordeste) e 6,2% (Sul). Para os pesquisadores, “intervenções urgentes nas políticas públicas são necessárias, pois os efeitos negativos da pandemia no diagnóstico/tratamento do câncer de mama estão se manifestando antes do esperado”.
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